Trinta e sete funcionários do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsáveis pela elaboração e manutenção do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), pediram demissão há poucos dias atrás. Em uma entrevista realizada pelo Jornal Nacional, os servidores públicos alegaram que os motivos que levaram a essa decisão se tratavam sobre assédio moral, acúmulo de trabalho, desmonte dos setores responsáveis pela estruturação da prova, bem como constrangimentos em torno dos temas escolhidos para compor as 180 questões do exame.
O cenário, a saber, também se intensifica pelo número de inscritos na prova que aconteceu ontem, dia 21, e no próximo Domingo, dia 28 de Novembro. Com pouco mais de 3 milhões de matrículas confirmadas, a taxa de inscrição é a menor desde 2005. Comparada ao contexto de 2014, no qual tivemos o recorde de 8,7 milhões de participantes no exame, a conjuntura atual demonstra ainda mais sua instabilidade. Talvez pelo fato de que, desde o início do governo Bolsonaro, o Ministério da Educação tenha sido ocupado por três pessoas diferentes e desqualificadas (respectivamente, Ricardo Veléz, Abraham Weintraub e Milton Ribeiro), ou talvez pelo motivo de que, contrariando o histórico acadêmico e bem-estruturado do Inep, o atual presidente, Danilo Dupas, não possui competência alguma para tomar posse do cargo.
Para além disso, importa destacar que as causas desse cenário estão diretamente relacionadas à falta de compromisso com a área da educação do país e, nesse âmbito, é realmente indiscutível afirmar que, agora sim, não apenas o Enem começa a ter a cara do governo, mas a educação como um todo é seu retrato falado. A história se repete e, nesse caso, repete o padrão de 2019, em que 60 questões foram censuradas da prova; todas elas relacionadas ao contexto sociopolítico e socioeconômico brasileiro. Dentre as tantas razões infundadas, estava a justificava de que estas gerariam polêmicas desnecessárias ou possuíam um viés muito específico e serviam ao propósito de direcionar ideologicamente as pessoas que realizariam o exame.
Neste ano, 20 questões sobre a história recente do país foram retiradas, em sua maioria, sobre o golpe militar de 64, pois, como afirmaram em uma planilha superficial no Excel, estariam descontextualizadas historicamente. Mesmo que algumas delas tenham sido admitidas novamente após toda a polêmica em torno do acontecimento, fica explícita a intenção do movimento. Aparentemente, filtrar “ideologias” significa omitir a nossa história.
Não à toa o patrono da educação Paulo Freire é tão atacado pelo governo. Para além de suas célebres frases sobre não existir imparcialidade e sobre como quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor, é importante dar ênfase à dimensão que o autor transfere às questões sobre história e cultura. Para ele, o processo de nos tornarmos mais ou menos humanizados depende do conhecimento que temos sobre a nossa própria história e de que maneira construímos e agimos perante a nossa cultura. Tornar-se mais humano significa, para o autor, enxergar-se no outro a ponto de ter a intenção de conceber uma sociedade livre, que abrace a diversidade das causas da vida humana.
Para tanto, é preciso conhecer o passado, situar-se no presente e imaginar futuros possíveis. A liberdade de Paulo Freire implica na tomada autônoma de decisões, o que quer dizer que precisamos desenvolver a capacidade de decidir por conta própria e não assumir como verdade todo e qualquer mito que apareça para difundir ideais rasos e intolerantes. Nas próprias palavras do autor, é preciso “temporalizar-se”.
É um exemplo contrário de tudo que pregou Paulo Freire uma prova que delimita o que se deve ou não saber sobre a própria história, desde alterações não tão sutis quanto a sugestão de alterar o termo “golpe militar” para “revolução de 64” a desdenhar do potencial da educação como fator de formação de seres humanos, de consolidação da humanização e de estruturação da sociedade. Quando estamos diante de um cenário em que apenas pouco mais de 3 milhões de pessoas pensam em ingressar no ensino superior, vemos a falta de organização e descaso que conjecturaram à situação atual, mas também temos uma prévia do nosso futuro.
É sabido que entrar em uma crise é bem mais fácil do que sair dela. Também se sabe que, seja nos parâmetros de fortalecimento da democracia e na preservação da cidadania, na melhoria das condições de vida, nas esferas de saúde, felicidade, no revigoramento da economia e da política, entre outros diversos âmbitos, a educação é um fator de emancipação, transformação social e, portanto, um importante recurso na superação de crises. Como dita Paulo Freire, realmente, “a educação não muda o mundo”, mas “a educação muda as pessoas e as pessoas mudam o mundo”.
Estamos falando sobre a precarização da educação e, consequentemente, do trabalho não apenas em seu sentido presente. A tragédia maior se consolida no fato de que a construção da política tal como tem sido feita ainda será sentida por bastante tempo. O legado da fome, da miséria, da intolerância, da insegurança, do recorde de desmatamento, da falsificação de nossa própria história não termina na próxima eleição. E, nesse sentido, mesmo que um tanto quanto irônico, não é de forma alguma surpreendente constatar que os mesmos nomes que defendiam a ideia de Escola Sem Partido, hoje exaltam sua marca na história. Mas, dentro dessa lógica, mais uma vez, torna-se quase impossível não admitir que nosso país está verdadeiramente com a cara do governo.
A péssima notícia é de que, com tanta instabilidade e desestruturação, nossa realidade ainda assumirá essa faceta por alguns longos anos. Já a boa é que reconhecer o caos atual é fundamental para construir a luta contra opressão e pela libertação de todos os povos. Se, para tanto, a educação é o caminho, que comecemos a repensar uma “educação para a decisão, para a responsabilidade social e política”.
Fontes
Educação como prática de liberdade – Paulo Freire
https://piaui.folha.uol.com.br/mafalda-e-reprovada-no-enem/
https://jus.com.br/artigos/75458/a-educacao-como-instrumento-de-transformacao-da-sociedade