- Foto: “Um homem recolhe lixo das águas do rio Citarum em Java, Indonésia, junho 2007” (https://sicnoticias.pt/mundo/2016-03-11-Tera-esta-imagem-os-dias-contados-)
Se o telefone toca, há grandes chances de ser alguma ONG, comunidade religiosa ou outro tipo de associação solicitando ajuda ou incentivando doações para uma determinada causa. Basta abrir alguma rede social ou ligar a televisão para se deparar com empresas privadas falando em nome de pautas sociais – se por um bem maior ou autopromoção, neste momento, não vem tanto ao caso. Nos supermercados, nas lojas ou nas ruas, não é raridade encontrar pessoas fomentando qualquer contribuição para as mais diversas instituições. Sobre qualquer uma das situações acima, o fato é o de que: se um dia nosso Estado se afirmou como garantidor de direitos sociais, hoje já não se afirma mais.
Talvez isso em grande parte tenha a ver com a ideia abstrata internalizada de que o Estado democrático é um caminho certeiro rumo à ascendência e progresso da igualdade social. Como se eleições livres e periódicas servissem somente para, de quatro em quatro anos, renovar a “cara” de quem representa o país e a participação política fosse apenas sinônimo de escolher aquele/a que governa. Bom, o cenário atual comprova o contrário.
A democracia, tanto em sua dimensão de valor político quanto forma de governo, enfrenta uma crise de deslegitimação. Isso quer dizer que nos situamos em uma espécie de dualidade lógica entre ou pessoas que desacreditam totalmente em sua eficácia como regime político e tendem a optar por ideais autoritários ou aquelas que se encontram inseridas em tamanha incerteza que não enxergam mais políticos, partidos e instituições de forma geral como estruturas confiáveis. Vivemos o paradoxo da despolitização da política.
Embora cada região possua suas particularidades, o que se percebe é que a rejeição à política é um fenômeno global. Se levarmos em conta que uma das característica fundamentais do neoliberalismo é a homogeneização e universalização política-econômica-cultural, entenderemos que esse cenário não é obra do acaso, muito pelo contrário, ele é uma obra de transição capitalista que se consolida no desmonte do Estado de bem-estar social.
Com esse estágio, como um meio de atenuação de crises do estágio anterior, o poder estatal se direciona para a esfera pública e se molda a partir da perspectiva que, munidos de liberdade, os indivíduos deveriam ser assegurados de direitos mínimos para sua autorreprodução. Assim, o capitalismo administrado pelo Estado se desenvolveu pela promoção de empregos e “parceria” com sindicatos, aposentadoria para os/as mais velhos/as, entre outros aspectos que serviam à garantia de manutenção da família – mesmo que tantas delas agravassem as condições de opressão às mulheres e às pessoas racializadas.
Mas se toda crise demanda uma reestruturação e se sabemos que o capitalismo é um sistema regido sob antagonismos, é sempre uma questão de tempo até se sucumbir à necessidade da renovação. Assim, de um Estado assegurador de direitos sociais básicos transitamos para um que se propõe interferir o mínimo; um Estado neoliberal. O resultado é um desamparo difundido. Tendo que lutar por trabalhos precários, andando em corda bamba executando a arte do equilibrismo com diversas funções com menos direitos, proteções e benefícios, nos deparamos com o neoliberalismo em ascendência: cada um por si e o Estado pisando em todos.
Nesse contexto, temos de um lado os valores da democracia que pregam a igualdade e inclusão social e de outro uma crescente individualização e competição inerentes ao governo neoliberal. Dessa combinação de elementos opostos, há uma ressignificação total dos diversos âmbitos da vida social, inclusive sobre a própria noção do direito a ter direitos. Com parâmetro de competição e autorregulação, ter direitos afasta-se de ser uma garantia e torna-se um serviço a ser ofertado por empresas privadas, ONGs, entre outras instituições que se encaixam no que uma vez foi papel estatal.
Muito além de um projeto econômico, o neoliberalismo também se constitui como uma esfera política e, portanto, seria ingênuo pensar que a organização da sociedade civil e a disposição de empresas privadas assumirem essa função proveria unicamente de um processo espontâneo. Seja como for, todos os indícios apontam que este também já é um cenário em crise. A ocorrência do número crescente de desemprego, a flexibilização das leis trabalhistas que se resulta na precarização do trabalho, o aumento da pobreza ou as mil maneiras que temos que nos desdobrar para sustentar uma sobrevivência mínima já demonstra esse desequilíbrio.
Destaca-se não apenas a instabilidade sistêmica, mas, principalmente, os efeitos que a transferência de responsabilidade e culpabilização moral surtem na sociedade. Dito de modo metafórico, tiram o peixe do riacho, escondem o anzol, quebram a vara e dizem que o pescador não se esforçou o suficiente. Em um barco furado, somos levados pela correnteza. Até temos remos nas mãos, mas remaremos para onde?